terça-feira, 12 de novembro de 2013

Carta ao Otto n°2

Filho,

Te ver logo cedo, com a boquinha sorridente, me extasia por completo. Não tenho a mínima vontade de fazer mais nada, é verdade. Gostaria de saber a sua risada. Seus olhinhos apertadinhos para que a boca se desenvolva, seus bracinhos numa agitação incansável e acolhedora. Descobrir novas coisinhas em você, dia a dia, é como montar um quebra cabeça. Vou separando as peças mais fáceis, uma a uma, tentando fazer conexões entre elas, pra depois vir com as mais difíceis. Vou estruturando aos pouquinhos. É o jeito do papai. Essa mania de prestar atenção às miudezas, de querer ver a beleza da flor, extrair seu sumo. Pode parecer estranho, mas assim me fiz poeta, filho. Assim sinto a grandeza da pedrinha e a pequenez de nós mesmos. Tenho tanta coisa a lhe dizer, tanto a lhe mostrar. Mas a verdade é que tu tens andado muito comigo. Sempre me apontando para o azulzinho do céu. Para alto. Fico todo dia a analisar essa imagem. Eu que sempre gostei de olhar pro céu, de me entregar as mais variadas manhãs e tardes, custei a entender sua mensagem. Percebi que a eterna mutabilidade das nuvens, do qual você tanto me falava, eram nossas expectativas em relação aos acontecimentos, em relação a tudo que desejamos. E que a imensidão do céu, esse azulzinho sobre nossas cabeças, era a certeza da vastidão de possibilidades em relação a essas expectativas. Somente tu, com seu dedo em riste, me fez ter a certeza desse jogo sem regras, sem dados. De que na vida não há amarras ou algemas. E que somos semideuses a dançar por cima do mundo. Á noitinha, como de praxe, voltaremos à nossas, tão edificantes conversas em silêncio, olho no olho, peito com peito, sorrisos, mamadeiras e sono.

Com todo carinho,

Seu Pai.
 
(Leonardo Schneider)

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Carta ao Otto n°1

Meu filho, desde a mais terna infância, quando a memória se faz presente, papai sonhava contigo. No escuro dos meus sonhos você segurava minha mão e me chamava pra brincar. Seu sorriso eu já conhecia e ele sempre me dera um conforto apaziguador, uma calma budista. Tu sempre andaste comigo, eu sei.  Já jogamos pedrinhas na lagoa e pulamos corda. Chutamos latas e brincamos na enxurrada. Lembro-me bem de nossas gargalhadas e gritarias pela casa, nossas correrias desenfreadas quando nos chamavam pra tomar sorvete. Sempre fora tudo tão doce, tudo tão azul. Mas agora, de fato, quero repetir todas essas nossas aventuras. Todas as nossas estripulias. Mas como já faz tempo, e papai anda um pouco velho, preciso ir com calma pra não me machucar. Papai, há tempos, tem tido uma só brincadeira. Que é a de se sentar numa cadeira e escrever. Parece chato, né? Mas é a brincadeira mais divertida que descobri nos últimos tempos. Nela podemos ser outros, podemos ser homem ou mulher, bandido ou mocinho, piratas, índios e xerifes. Podemos ser nós mesmos, mais do que nunca. Podemos chorar e gritar, rasgar o peito, podemos, até, engolir o mundo inteiro, ir à Lua, visitar outros planetas num foguete só nosso.  Quando estiver maiorzinho irei te ensinar, prometo! Criaremos nossos barcos, nossas naves. Criaremos nossos cavalos alados, nossos gigantes pra nos protegermos dos perigos. Seremos, tu e eu, fortes guerreiros de batalhas. Confesso que estou ansioso pra chegada desse dia, porque essa minha brincadeira dá uma vontade danada de viver mais, de querer experimentar mais, e quanto mais nos entregamos, mais podemos brincar. Essa brincadeira, meu filhote, não acaba quando crescemos e ficamos tímidos e chatos. Nela podemos nos lançar até o infinito, sem medo de parecer feio ou idiota. Por que essa brincadeira vem de dentro, de nosso silêncio, do que somos.
 
(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013



Tem alguém aí? Responda! Eu preciso tanto falar. Preciso contar tudo o que acontece comigo. Vamos, dê algum sinal! Juro que serei breve. Falarei tudo que me é urgente, tudo que está contido e empoeirado. Por favor, responda!  Não tomarei muito seu tempo. É que essa vida anda bruta demais, chula demais. Precisamos de desabafos e aditivos. Precisamos ganhar dinheiro, sair pra passear. Andamos tão apressados, esse gosto de gasolina. Ei? Você ainda esta aí? Diga alguma coisa! São tantas noites mal dormidas, esses cigarros entupindo os cinzeiros. Nossas velhas vidas, nossas casas vazias, a mesma mesa posta. Vamos! Não é possível que fique calado tanto tempo! Nossas vidinhas medíocres, essas camas cheirando a mofo, louças sujas na cozinha, esse amor dando bolor. Esse existir sem sentido. Não vai falar nada? Essa sua estúpida vontade de ter, sempre ter, alguma coisa nova, algum objeto novo. Estar na moda, trepar, gozar, mastigar e cuspir fora. Vai ficar fazendo charme, né? Esse excesso de querer, de preencher o inevitável vazio, de precisar todo dia ir ao açougue, ao supermercado, à padaria. Essa vontade de almoçar em lugares bonitos, de comidas bem fartas. De se achar importante. Vai, fique calado mesmo! Engula toda essa fumaça dos carros, se empanturre ao máximo de toda essa porcaria. Afinal, a vida é essa pirraça, não é mesmo? Pra você não há nada demais. Meus créditos estão no fim. Já que vai bancar o calado, preciso desligar. Mas não diga que não avisei. Você não quis se manifestar. Nos vemos por aí. Até logo!


(Leonardo Schneider)


Toda vez que saio pra rua, tenho a nítida impressão, vendo os olhos e bocas dos transeuntes que me cruzam o caminho, de sentir toda a existência do que nunca fui, ou uma pequena impressão do que eu poderia ter sido. Sinto, talvez, uma minúscula parcela do que eu realmente sou. Acabo por entrar, goela abaixo, em todas essas bocas que vejo, vasculhando as entranhas com bastante cuidado e perspicácia. Vou abrindo caminho nesse interior, indo cada vez mais fundo, tateando pulmão, coração, esôfago e estômago. Apalpo tudo que posso. Quero sentir as diversas texturas tão particulares de cada um. Saio na mesma velocidade com que entro, e nesse lampejo de observação, sinto o outro em mim mesmo com intensidade absurdamente avassaladora. Por certo, estou notoriamente errado das impressões que acabo por roubar, pois verdadeiramente crio tais sentimentos a partir de meu próprio ponto de vista, na experiência de vivenciar o outrem. Puro deleite. Tudo bem. Pele por pele, reconheço, a minha já basta. Mas todo esse enredo preenche meu vazio existencial.  Há tantos outros em mim mesmo. Só que esses tais se escondem com maestria no escuro, no oco, no buraco do meu peito. É difícil agarrá-los por serem escorregadios e voláteis. Talvez, por isso, por ser aparentemente mais fácil, busco nessa experiência exteriorizada, os meus tantos “eus” perdidos pela cidade.
 
(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


Dentro do olho muitos arcos.
Íris, retina, córnea, pupila.
O seu e o meu mundo,
Nossa rua.
Dentro do olho muitos ciscos.
Poeiras, pedregulhos, ventos de areia.
Os seus e os meus colírios,
Nossa fuga.
Dentro do seu olho, o meu olho.
E o que você vê é seu, o que eu vejo é meu.
Não há nada mais sincero que o conteúdo do fundo das vistas.
 
(Leonardo Schneider)

terça-feira, 1 de outubro de 2013


-Seu café esta esfriando!
 Alerta a moça de minissaia sentada do outro lado do balcão. Batom roxo, maquilagem borrada. Parecia ser uma dessas mulheres que virara a noite em papos rasos, das falidas mesas de botequim no centro da cidade. Tomava seu café matinal com a cara amassada. Um maço de cigarros baratos posto de lado, cinzeiro entupido de bitucas amareladas. Os fundos olhos denunciavam. Por certo, exagerara na noite anterior. Queria companhia. Dava pra ver pela maneira como  inclinava o corpo pra frente em sinal de “sim”. Falava rápido, talvez por medo de que entre uma pausa e outra, o ouvinte catatônico se retirasse. Reclamava do alto preço pago de aluguel num muquifo do centro, de que tinha preguiça de política, de que pintava o cabelo uma vez por semana para manter uma aparência mais jovial. Falava sem pausas, misturando os mais corriqueiros e fúteis assuntos. Do lado de cá do balcão, um rapaz fixava os olhos  num quadro com a fotografia de Chaplin e um cachorro. Não prestava a mínima atenção na conversa da moça, de vez em quando,  com o canto de olho, via o abrir e fechar da boca falante. Calça jeans desbotada e sapatos sujos. Devia trabalhar no campo ou em alguma obra ali perto, pois eram perceptíveis as marcas e os torrões de lama que saíra de seus sapatos na reta do banheiro.  Não havia mais ninguém naquela ratoeira. Um café e mais nada. Era o que pedia de 10 em 10 minutos. Estava tomado em total silêncio, completamente taciturno. O atendente passava aquele pano imundo, na surrada madeira que compunha o tampo daquele velho balcão. Palito na boca, barba mal feita. Tinha a aparência de um estivador de porto. Camiseta branca, corpo peludo, sujo. O fiel retrato do descaso de si mesmo. Atento à situação, logo percebera uma certa mudança na expressão do rosto daquele garoto. Parecia estar, aos poucos, perdendo a paciência com aquele falatório incessante da moça histérica. Um clima de tensão instaurava-se na bodega. A mulher falando e falando, o rapaz com o olhar no retrato,  o atendente, à espreita, passava o fétido pano no balcão e rolava o palito na boca. De repente, um berro:
-Malditos palhaços! Nunca arrancaram-me uma risada!
O silêncio foi fúnebre. A mulher histérica e o atendente se entreolhavam sem nada entender. O garoto dava socos no balcão e gritava:
-Filhos da puta, desgraçados! O cinema é uma piada de mau gosto! Vão pro inferno com seus enlatados!!!!!
Atirou a xícara contra a parede, que deixou  um rastro de café até o rodapé.  Abriu a porta com um chute e sumiu na calçada. O dia estava cinzento. A mulher se calara. O atendente retirou-se pra enxaguar o maldito pano fedido na pia.
(Leonardo Schneider)
 
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013



Minha boca não sossega. Aliás, são as palavras, tão mal educadas por não respeitarem meu silêncio,  que ficam balbuciando nesse pequeno esquema complexo que é o pensamento traduzido em fala. Quer gritar, é o que percebo. Expandir-se ao máximo. Sinto um certo tremular expontaneo, uma espécie de tic nervoso.  E isso se dá, quando em sucessivos instantes do dia, bem delimitados no meu quadro de horários, lembro de tua pele. O que mais me intriga é que esse pulsar muscular, essa somatória de musculos trabalhando ao mesmo tempo e em conjunto,  principia quando sofro incidência direta dos raios solares, ou seja, sempre nas horas mais fortes do dia. Não sei o que o sol tem à ver com toda essa estória, não sei qual foi a internalização simbólica que fiz da tua pessoa,  mas a sensação epidermica que tenho com ele, automaticamente me traz você. Bem, dito isso, mesmo não sendo muito didádico ou claro, tendo em vista que essas coisas somente a poesia dá conta do recado, e mesmo assim levam anos pra se atingir o objetivo almejado, gostaria que soubesse que essa minha loucura obsessiva por tua pele não é de hoje. Nossos distanciamentos são tão curtos quanto ir na padaria da esquina. Primeiro, porque esta sempre em mim, nos meus sonhos, na minha íris, danças em minhas narinas. Segundo, é que quando nos vemos, sinto o estranho sentimento apaziguador do conforto, do calor de teu peito. Me sinto, verdadeiramente, em casa. Carrego na minha sacola fragmentos do teu corpo. Ora abuso de umas, ora de outras partes. Tudo tão insano que sempre me perco e retorno a tua pele. Ainda vou juntar todas as partes com o tempo. E nesse dia, quando terminar, quero que apague a luz e junte teu corpo ao meu,  pra que eu possa sentir o calor desse teu eu ensolarado.

(Leonardo Schneider)

Sempre me fora muito àrduo esse processo de deixar minhas digitais em ti. Mas sempre esta à esperar, como se mendigasse meus gestos. Cruel e maliciosa é tua forma carente, colocando-se no papel de vítima. O que queres realmente? Tu que já arrancaste metade de mim, metade de tudo que é meu. Levaste embora consigo meus sorrisos, sortilégios, paixões absolutas, todas as minhas máximas metafisicas. Agora quer minhas linhas digitais em tua pele? Quer um “cuerpo a cuerpo” nos parâmetros de Sade? Já te engoli diversas vezes, rapaz. Principalmente na infância. Recordo-me muito bem do dia em que ousei degustar teu corpo, apenas pela curiosidade de saber qual era o sabor. Sei que também já lhe fiz em pedaços, em bolinhas, mas confesso que foi por raiva, não peço perdão. Hoje quero a redenção. A revanche por ter me tomado por anos, dia após dia. Vou lhe marcar pro resto da vida, meu caro rapaz. Criarei a expressão inapagável, nada ira te salvar. Mas onde foram parar as malditas palavras? Não ria da minha cara, seu filho da puta!! Sua límpida brancura me enoja. A caneta esta em minhas mãos, sua hora vai chegar. Você não perde por esperar.

(Leonardo Schneider)

terça-feira, 17 de setembro de 2013


Sigo na palavra, à margem. Com meus parágrafos nunca escritos ou organizados. Meus silêncios sentenciados entre vírgulas e pontos. Todos os meus pensamentos sempre se misturam na batedeira de bolo.  110v, é claro. Aí de mim se fosse 220v! Misturo ovos e massa capilar por capricho de quem quer ficar careca de tanto sentir e pensar. Pensar, pra falar a verdade, na escrita, nunca pensei.  Deixo os dedos correrem no teclado, embora muito antes a caneta já rabiscara muitas das minhas aflições ao meio. Tenho tudo escrito a punho, essa é a veredicta condição. Papéis e montoeiras de papéis. Estão todos aqui no meu pequeno bolso da camisa. Como de praxe, costurados no lado esquerdo. Já é bem notado pelos transeuntes que passam. Aquele bolso estufado, parecendo ser de gente séria, com contas à pagar, dinheiro ou qualquer outro papel que o torne tão sério. Mas não. São apenas minhas medíocres palavras. Não sei bem o “por quê” deles costurarem o bolso do lado esquerdo. Mas isso fica poético pra qualquer imbecil, metido à besta. Acrescento fermento no bolso. Quero que o que escrevo cresça quentinho no forno, rasgue a costura. Principalmente as de ângulo reto. Bato bem pra que a massa de papéis e palavras se dissolva rapidamente. Pronto. Consigo chegar em casa. Retiro com cuidado e reservo.  Deixo descansar. Duas horas. É hora de passar pra outro recipiente e levar à geladeira pra firmar. Só então, depois de um dia, retiro a forma fria e sirvo em fatias. Sei que às vezes erro a mão. A pequenina variação dessa minha enfadonha receita. Ainda hei de tirá-la do cardápio de entrada, pra que possam se fartar de chantili e cereja, um dia, na sobremesa. 

(Leonardo Schneider)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Escrevo no meu quarto. Deve ser a milésima vez que repito. Eu, meu vasto vazio, meu silêncio. Mas as palavras saltam, bailam. É festa onde não fui convidado. Preciso organizar de penetra, o peito e a voz. Elas vieram sem ter salgadinhos. Não tem bebidas estocadas no armário para que eu possa servi-las. Terei de ser um tenaz anfitrião. Preparar patês de ultima hora e ver o que tem na geladeira. Restos. Preciso, amiúde, de quaisquer efeitos que façam ficá-las. Elas chegarão a qualquer momento. Nesses últimos tempos é coisa tão rara, essas palavras guardadas. São tantas pessoas, frases, sorrisos, rostos, palavras para desembucharem. Estou ansioso, roendo unhas, frio na barriga, um gole de água. Elas estão pra chegar. Fico da sacada olhando. A campainha toca. Deus! É a hora. Abro a porta e ninguém esta lá. Mas elas chegaram. Estou cordialmente convidando para que entrem, os malditos patês estão sobre a mesa. Elas se entreolham, questionando. Não! Não vão embora! Juro que buscarei cerveja na padaria. Não! Fiquem pelo amor de Deus. Que se fodam essas malditas palavras! Sempre vem prometendo ficar. Nos 7 pecados capitais, a mentira foi a única esquecida. Elas irão voltar. Dá próxima vez estarei bem preparado. Cerveja, patês e salgados. Elas terão de ficar.


Leonardo Schneider


sexta-feira, 12 de julho de 2013


Você na multidão, você é diferente. Embriagava-me seu sorriso de canto de boca. Acho que era o que eu via ou o queria ver, não sei. Talvez, na verdade, fosse só um aceno de cabeça, um consentimento.  A gente cria tanta coisa quando quer ter certeza. Todos temos uma pitada de neurose, essa é a verdade. Mas independente de criações meramente verdadeiras/imaginativas, te ver de longe foi uma nova descoberta. Não sei se por auxílio de luz ou se por raríssimo embelezamento do dia, o certo é que pude lhe ver um tanto diferente, um tanto séria e segura de si mesma. Sei que temos diversas maneiras de nos protegermos, embora, já há muito me despi desses mesmos medos por acreditar que tudo é solidão, senti pela primeira vez sua afável, delicada e sublime, dureza. Claro que somos produtos de nós mesmos, de tudo que nos cerca. Mas esse foi o detalhe que mais gostaria de poder tocar e sentir. Queria saber ao certo o porquê dessa defensiva tão característica da fase juvenil, onde precisamos dos bandos para nos esconder.  Esconder é a palavra central. Onde foi em sua vida que lhe fez mudar essa chavinha tão inútil? Você é muito mais cor do que pode mostrar. Então mulher, estou esperando essa sua mega explosão. 
Com todo carinho do mundo,

Leonardo Schneider

quinta-feira, 6 de junho de 2013


Ela me pediu para que eu escrevesse algo. Nesses últimos tempos tenho andado tão oco, que minhas próprias palavras têm retumbado em meu vazio. A verdade é que criaste um buraco raso. Um buraco de poça. E eu sempre a retornar com meus pés sujo de lama pra casa. Incrível sina a que me deixaste. Essa eterna punição de Sísifo. Piso sempre que me distraio. Todos os dias é verdade. Sempre que me aproximo de teu cheiro, uma espécie de breu me toma à vista. E eu novamente a sujar o sapato. Lá estava o buraco. Será essa sua eterna marca? A de estar sempre em minha jornada? Ou será que fora minha inconsciente escolha? A de querer sempre atolar minha pegada? A estrada é renovada todo dia e eu nunca sei onde estará aquela minha amada poça de barro. Mas guardei alguns sujos sapatos, caso queiram repavimentar minha estrada. Quando fores embora, terei a indubitável certeza. A de que deixarás certamente, um fundo buraco.

(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 15 de maio de 2013



Há tempos que penso no sabor de tua pele. No cheiro tão branco, tão meu. Penso em cada pedacinho que não conheço e queria conhecer. Esse sonho só cabe aos meus desejos epidérmicos. Minhas pequenas articulações cerebrais traem verdadeiramente meus desejos. Mas é como se eu a conhecesse desde o princípio dos tempos. Como se fosse inerente em minha alma. Não sei como proceder. Queria saber tua conclusão. Não tenho coragem suficiente pro teu silêncio. Sei que és grande e doce, somente. E sigo calado, indiferente. Pura mentira de mim mesmo. És cobra coral e eu sei. És das minhas serpentes a favorita, no meu habitat obscuro. Cuidaria-te se fosse preciso. Alimentos suculentos, minha carne viva aos pouquinhos. Lhe daria toda poesia escrita. Todos os dias. Obviamente, pelas manhas, no café, como promessa, o meu e seu cheiro de travesseiro seria a regra. Nossa língua untada entre delícias do cotidiano. Meu desejo é carne e osso, fadiga. Sua enxaqueca sempre fora minha íngua, despercebida. Suas minúcias, o meu arquétipo. Sua premissa, minha fuga. Quão bom seria acordar com teu cheiro dia após dia.

( Leonardo Schneider)

sexta-feira, 10 de maio de 2013


Sempre que aparece, por incrível que pareça, sinto seu gosto de longe. Não sei se são puras imbecilidades essas minhas impressões ou se realmente, de alguma forma, tua pele esta impressa em minha língua. Sei que és doce-amarga, apenas isso. Mesmo tendo esse sabor cacau 85%, sempre tento ler algo a mais em tua pele escrita. Mas como se mexe em demasia quando fala, e meu grau de miopia é um tanto elevado, às vezes, fica bem complicado destrincha-la. Como gosto disso e como me dá prazer. Lê-la sempre foi meu hobby. Gestos e manias, o fundo da retina. Ah essa é a melhor parte. A retina. Bolinhas de gude brilhantes. Seus olhinhos se misturam à sua boca quando ri. Vejo os dois ao mesmo tempo e não consigo mais prestar à mínima atenção quando fala, porque estou ocupado demais em ver o que tem lá dentro. Queria entrar em você, puxar seus cabelos, romper a sua goela, me esbaldar em seus líquidos, retumbar em tuas veias. Mas me contento muito em lê-la. A gente se habitua a tudo. A verdade, é que no fundo tenho um enorme medo de que se transforme em outra coisa. Outra coisa diferente do que és em mim. Medo, talvez, de que se transforme em você. Não sei ao certo. Acho que é isso. Prefiro a ilusão de tudo que crio. Ainda não treinei a esquiva pro nocaute brutal da realidade.

(Leonardo Schneider)

segunda-feira, 1 de abril de 2013


Essa noite sonhei contigo, teu cheiro, teu corpo e teu sexo. Você, deitada, sorria feito criança quando faz arte. Sapiente em tua sapequice, eu me jogava em teus braços dourados, mordiscando tua isca. Você esquivava-se querendo, prometendo sorriso a sorriso um pouco mais de terreno. Minha boca avançava casa por casa, e eu no vulcão do desejo, de saliva inundava os buracos e fendas, fazendo a Terra mudar.  Como é bom te sentir em meu sono, pequena. Às vezes me omito, confesso. Não deixo ninguém ver minhas, tão suaves, delícias. Guardo tudo no fundo do armário, deixo empoeirar, criar mofos e traças. Esse é meu jeito. Essa é minha tática. Junto um bocado de desprazer pra depois, com paciência budista, de tantinho em tantinho, melhor devora-la.

(Leonardo Schneider)

terça-feira, 19 de março de 2013


Você foi embora de mim, fez as malas, saiu como entrou. Já era hora. Um pouco tarde, confesso. Mas era hora. Arrumaste violentamente sua mala que cheirava a mofo. Jogou seus vestidos, seu perfume predileto, nossas fotografias amareladas pelo tempo, meus papeizinhos de mesas de bar. Enrolaste tudo de qualquer jeito. Pouco importava se iam amassar ou quebrar seus pertences. Você queria partir, estava decidida. O mundo lhe esperava lá fora, na próxima esquina ou em outros olhos. Tinha pressa. E eu não tinha mais o que escrever pra você, eis a verdade. Correste para porta feito raio e eu ainda pude ver seus negros cabelos. A casa ficou muda. Nessa noite pus a mesa pra um, acendi o cigarro e fiquei em silêncio lembrando seu sorriso. A lua acomodou-se a meu lado, lambendo meu ombro. Fiquei ali por um tempo, observando da janela, a rua e seus cinzentos transeuntes.

(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 6 de março de 2013

Presente de aniversário


Como transmissão de pensamentos e idéias, de forma que ao mesmo tempo em que pensei, recebi a brilhante e emocionante notícia que ganharia um maravilhoso presente. Presente este digno de todos os aniversários já vividos, o mais lindo. Primeiro pelo próprio objeto, que me afeiçoa viciosamente. Segundo pela pessoa que me dá esse estrondoso e vibrante objeto. Ou seja, um duplo presente. Este é um presente além-homem. Esta além das fronteiras do psiquismo e da carne. Este é um presente pra alma de poeta. E por ser um presente colorido, daqueles que são dados por quem ama de peito aberto, justificativa-se aí o fato dele ser o maior de todos os presentes. 
Como forma de agradecimento, só poderei compartilhar-lhe da imensidão deste meu favorito e conterrâneo poeta.
Obrigado por tudo, meu amor.
Te amo.






 

Contranarciso


em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

(Paulo Leminski)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013


Molhada é nossa palavra. Eu queria tê-la inteira em minha boca aos bocados, pedaço à pedaço. Sentir o seu cheiro, lamber as suas partes. Deitá-la em meu corpo non grato. Feito animal arisco, encurralado, não consigo me desvencilhar. Passo horas escrevendo pra ninguém. Casos tão fúteis, pensamentos tão chulos. Tudo isso pra anular esse meu sentimento digno de psiquiatria. Foco nas plantas, carros, e gentes de todos os tipos. Busco arestas estranhas, meus cinzas curitibanos e rôo minhas unhas para não fumar. Mas você volta, felina úmida. Volta aos meus sonhos e desejos porão. Dança nua entre meus dentes e minhas palavras, eu quero a mordida bem dada. Não tenho medo, nossa festa é bem curta. A noite já vem. E quando fechos os olhos e chega o meu breu, você parte pra longe. Agarro-me ao travesseiro, escuto a lua e o bater da porta. Mas esquecestes pra trás o mel de seus olhos, seu cabelo crepusculo, sua pele dourada.

(Leonardo Schneider)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O jardim era tão bonito que "não" tive medo do inferno.


Queria escrever pra você. Tua ofegante e vulcânica escrita não me deixa mais escrever. Faltam-me pontos, vírgulas, parágrafos. Fico perdido entre o silêncio e o som. Retumba em minha alma feito repique marcado. Mas é óbvio que o que me falta, é o que tanto preciso. Espaços juncados, trançados entre os conceitos-chave. A dualidade entre o vazio e o preenchimento, o entra e sai, o silêncio existente entre os batimentos cardíacos. Gosto muito desse sincopado, dessa forma pulsante de ler, mas confesso que queria lhe escrever. Queria escrever um pequeno verso bonito, qualquer Haicai. Talvez um dístico, no máximo um tetrástico. Mas esse singular silêncio que antecede a palavra deixou-me findado em mim mesmo. Na verdade, instaurou-se em mim uma nova forma de querer escrever. Tento fugir, ir ali na esquina comprar uns cigarros. Não há mais jeito, fui violado por tua forma que tanto me agrada. Vou roubá-la pra mim, assim como levaste meu peito em palavras. Obrigado.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Sem sentido.

Não sei ao certo o sentido correto.
Na verdade nunca saberei. Ninguém saberá.
O acaso com seu vadio descaso desfiguram toda rota.
Sem qualquer instrumento a gente se agarra no que dá.
Segue correntezas, ondas, ventos, estradas, amores, conselhos, ciências, etc.
Onde isso vai dar? Toda gente se pergunta.
Há algum simples lugar pra deitar o peito nu, aconchegar-se, sentir a brisa?
Esse meu próximo passo definirá toda minha existência?
Na verdade nunca saberei. Ninguém saberá.
Não há regras mecanicistas no universo, nem na casa vizinha.
Só o homem respira essa matemática.
Feliz o homem que não vê pragmatismos em tudo na vida,
Que não transforma ações em finalidades rasas,
Que simplesmente se impulsiona de dentro pra fora,
Feito um pequeno deus criando vida na vida.

(Leonardo Schneider)