terça-feira, 21 de janeiro de 2014



Essa noite lembrei-me de Ceci. Lembrei-me de seu corpo macio e úmido, do seu olhar apertado. Do jeito que prende o cabelo. Confesso que fiquei teso, pois Ceci sempre me fora uma baita inspiração. Por onde andarás? Com quem se deita? Será que calça meias pra dormir? Será que afaga o travesseiro em vão? Não quero pensar. Prefiro guardá-la naquela mesma mesa de botequim do centro da cidade. As pernas cruzadas e o sorriso de um eterno consentimento, a bolsa à tira colo, o cigarro na mão esquerda. Ceci tem muitos detalhes, eu sei. Mas acredito que se eu enumerasse todas as suas características, seus pequenos contornos e ondulações, me perderia em banais conjecturas, me perderia textualmente. Ceci é do mundo, não minha. Sempre a desejara, mas aos poucos descobri sua misteriosa arte de encontros e desencontros. Gatuna da noite, a vejo nos telhados, nas casas vizinhas. Algumas vezes só de passagem. Ceci é escorregadia feito peixe de aquário. Não se captura facilmente. Eu, de tanto descrevê-la, consegui minimamente, de um jeito tão absurdo e estranho, fotografá-la em meus textos. Ceci esta aqui agora. E cada vírgula, cada ponto ou sílaba, é um quebra cabeça que vou montando aos pouquinhos. São partes equidistantes de sua alma. Suas peças são bem misturadas, nada fáceis, apesar de minha habilidade. Ponho uma aqui, outra acolá. Um dia, quando faltar a última peça desse puzzle, vou escondê-la no fundo do armário, rasga-la em minúsculas partes, de forma que desapareça por completo. Quero sempre olhar Ceci faltando um pedaço. Pois assim ela me deixou e a assim pretendo deixá-la.
(Leonardo Schneider)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014


Ceci será seu nome daqui pra frente, daqui pra trás. Nunca em momento algum havia lhe dado nome. E Ceci é um belo nome. Ceci não é diminutivo de Cecília. É apenas Ceci. E Ceci se afastou de mim já faz algum tempo, como eu me afastei de meu lápis. Escrevia-lhe sempre que dava. Jogava-me por inteiro num papel em branco, com a esperança de que ela, com toda sua dureza, talvez por infortunos que a vida dá, pudesse ao menos ler e se sensibilizar, amolecer. E Ceci amolecia. Eu escrevia. Quantas e quantas noites escrevendo, buscando cores, me entregando à Ceci. Ela com carinho e aspereza, me entregava seu corpo úmido, sua boca e seus olhos. O peito não. Talvez por medo, receio, não importa. Ceci se entregava do jeito que dava. Quando nos encontrávamos não havia palavras. Escrevíamos nosso amor nas paredes de banheiros, no corpo e eu tinha um medo danado. Ela abriu-me por inteiro, fez morada, cozinhou e arrumou nossa cama, mas partiu na primeira corrente de vento, desses que dobram as esquinas.  Nenhum pertence deixara para que eu pudesse guardar. Sofri sem textos, sem papel ou caneta. Sei bem de sua escolha, suas metas. Deixara apenas uma carta sincera, mesmo que doída. Com os seguintes dizeres:

-Nunca se esqueça de mim, meu querido. Fui-me embora para que morra poeta.
 
(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014



Hoje acordei mais cedo, lembrei-me do teu cabelo. Engraçado essas pequenas idiotices que acabam por nos tirar o sono. Calço os velhos chinelos. O pó de café me aguardava como sempre no mesmíssimo lugar. Sujeito chato/metódico que sou, não tolero que ele saia andando por aí como bem quer. Dependo muito dele e ele sabe disso. Quatro colherinhas, não, cinco bem cheias para acentuar a realidade. Arrasto-me até o sofá enquanto a água e o fogão executam com maestria seus monos trabalhos. Lá fora o barulho da manhã. A noite fora embora levando consigo todos nossos sonhos, desejos, fantasias. A passarada anuncia a festa do dia. Não sei por que Deus resolveu criar todo esse estardalhaço nas manhãs, deixando o silencio nas noites escuras. Eu persisto no silêncio, nas noites de mim mesmo. Escrevo, rasgo, escrevo. Maldita condição essa que me persegue. Debruço-me sobre a mesa quando verdadeiramente bate o cansaço. Afundo a cara no papel, sinto seu cheiro. A chaleira apita feito troca de turno nas fábricas. O café está quase pronto. Basta medir bem a quantidade de água a ser despejada. Pura alquimia. Resolvido. Açúcar para equilibrar o fel de cada dia. Onde esta o açúcar? Maldito. Mandei-o dormir juntamente com o pó de café. Vasculho em toda a extensão do armário. Lá se encontram todas as nossas inseguranças explicitas, nossas manias. Quer saber mais sobre uma pessoa? Abra seu armário da cozinha. Que se foda esse açúcar! Quem precisa dele quando se tem mel? Minha favorita gosma dourada. Mas café com mel não é a melhor pedida. O mel tem seu lugar e deve ser preservado. Vou de café sem açúcar mesmo. Um gole. Puta que pariu! A vida já nos é amarga! Tudo bem. Finjo que esta tudo bem. Não esta nada bem. Preciso enfiar tantas palavras naquele fajuto papel. Ele me olha da mesa da sala. Cale-se! Eu sei, eu sei! Rodeio a mesa pensativo. Lá fora os malditos pássaros fazem a festa. Cagam em tudo e cantam. E eu aflito por umas míseras palavras. Talvez se cagasse e cantasse ao mesmo tempo, seria mais feliz. Mas só nas manhãs. Tenho certeza. Pego a caneta, uma lambida na ponta pra dar sorte. Silêncio. Parece noite novamente. Elas começam a bailar, bem desfocadas, de longe as vejo. Estão se aproximando, cada vez mais perto. Já as vejo se beijando. Venham meus amores! Estou aqui! Que prazer imenso! Elas chegaram. Suaves, leves. Minhas adoráveis palavras vieram hoje me visitar.
(Leonardo Schneider)