quarta-feira, 31 de janeiro de 2018


Comer papel é ato digno.
Quando não dá,
Quando tudo quanto pensas e escreves é autofágico,
Eu juro,
Eu como.
Um dia quis comer o mundo.
Quis comer o que brotava nas cabeças e nas vistas.
Quis comer o que mexia e não mexia.
O que estava vivo ou sem vida.
O que era multicolor ou cinza,
Quis comer.
Aí veio o amor.
O devorar contínuo uniforme.
E ainda hoje nem sei se é certo ou estúpido
Essa coisa da boca.
Não toco nesse assunto, nunca.
E se me encontrares na rua, não fale sobre isso.
Porque comer pensamentos e olhares é coisa muito séria.
A gente quase não dorme direito.
E escreve cedo, de tarde ou de madrugada.
Rasga papéis, faz bolinhas, amontoa o lixo.
Come o que vem de fora.
Principalmente o que vem de dentro.

(Leonardo Schneider)


Você.
Sim, você que acendeu o interruptor nesse instante.
Chegou, acendeu.
Eu vi,
Vi você.
Daqui do outro lado da cidade,
Eu vi.
Agora a faca de fatiar o tempo,
No pão.
Aquela faca de serrinha.
De fatiar na mesa ou na pia mesmo.
No prato.
Manteiga, presunto, muçarela,
Televisão.
Banho.
O sofá, a cama.
Sim você mesmo.
Te vejo da minha janela.
E agora?
Agora o semicerrar dos olhos.
Estou falando de você!
Acorde!
É de você que eu estou falando.
Não tem problema.
Durma, minha querida.
Mas tenha vida,
Tenha vida.

(Leonardo Schneider)

domingo, 28 de janeiro de 2018


De fato perdi a linha.
Nada escrevo dos meus “eus” e sobre eles.
Sobre tantos que um dia eu fui e jamais tornarei.
Dos que apenas deixei ir,
Deixei que passassem.
Dos que fui por um segundo, sendo o mundo,
Tudo.
Dos que falsamente fui sendo,
Montando, arquitetamente na escrita.
Sem regra ou rima.
Quem são eles?
Já não lembro.
Por onde andam?
Hoje são surdos, secos, fundos.
Não são textos, sequer frases.
Já não falam da cor, de luz e sombra.
Não movimentam a boca.
Hoje são estéreis fotografias recordativas.
Mofos enquadrados no rude papel em branco.
Hoje os mil personagens são nada.

(Leonardo Schneider)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Quis lhe escrever,
Mas o papel em branco é uma arena,
Um touro.
Eu toureiro ensaiei uns passinhos.
Rabisquei, apaguei.
Reescrevi, desisti, revisei.
E de tanto driblar o touro,
De tanto insistir,
Deixei-me apanhar.
Ajoelhei-me à espera dele,
Ergui a caneta em sinal de revolta.
-Pode vir!
A arquibancada sempre torce pelo touro,
Um coro soou:
-Touro, Touro!
Meu corpo no ar,
A caneta caída.
Foi dia de touro.
Amanha eu não sei.
A arena ainda perde por me esperar.

(Leonardo Schneider)



Canto, qualquer canto,
Quina.
Velhos cantos silenciosos que a gente rebusca,
Na justa junção das pontas dos quadrados,
Dos triângulos, do ângulo reto.
E a gente circulando feito diabo.
Canto.
Eternos círculos, demasiadamente helicoidais.
E rodopiar pelo centro, por um momento
Aparenta sinal de equilíbrio,
Sempre haverá um canto.
No nosso interior,
Em qualquer canto.

Um canto.

(Leonardo Schneider)