quinta-feira, 26 de julho de 2012

Respeito


O que está sendo feito
Pode ser de outro jeito
O que já se fez é bem feito
O que está sendo feito
Pode não estar direito
O que passou é perfeito
O que está acontecendo
Pode ter defeito
O que já foi eu aceito
O que está acontecendo
Pode ser de outro jeito
O que passou merece
Respeito


(Arnaldo Antunes)

terça-feira, 24 de julho de 2012

Nosso estranho devir.


-Agora passou! Tudo passa, passou.
-Não é bem assim, e aquilo tudo?
-Também passará! Requer mais um tempo, mas passará.
-Mas quem passa, algo lhe restará?
-Restará o fato de ter passado, como tudo na vida!
-Passado histórico ou ação de passar?
-Passar com seu passado. Acho que isso.
-Feito matéria em decomposição?
-Exato! Feito as passadas de qualquer caminhar, apenas passar.


(Leonardo Schneider)

sábado, 14 de julho de 2012

A primeira vez que entendi o mundo.

A primeira vez que entendi do mundo 
alguma coisa 
foi quando na infância 
cortei o rabo de uma lagartixa 
e ele continuou se mexendo. 

De lá pra cá 
fui percebendo que as coisas permanecem 
vivas e tortas 
que o amor não acaba assim 
que é difícil extirpar o mal pela raiz. 

A segunda vez que entendi do mundo 
alguma coisa 
foi quando na adolescência me arrancaram 
do lado esquerdo três certezas 
e eu tive que seguir em frente. 

De lá pra cá 
aprendi a achar no escuro o rumo 
e sou capaz de decifrar mensagens 
seja nas nuvens 
ou no grafite de qualquer muro.



(Affonso Romano de Sant'Anna)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O que há em mim é sobretudo cansaço



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto, nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

                      Álvaro de Campos

terça-feira, 10 de julho de 2012

Poema

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são 
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

           Álvaro de Campos

terça-feira, 3 de julho de 2012

Mudo no mundo

Mudo.
Depois de hoje, 
Depois de tudo.
Eu queria a palavra.
Eu queria era o som.
Mundo.
Hoje eu o carrego de volta,
Hoje eu o carrego de burro.
De ti já não espero mais nada.
De ti já não espero o absurdo.


(Leonardo Schneider)