quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Carta ao Otto n°1

Meu filho, desde a mais terna infância, quando a memória se faz presente, papai sonhava contigo. No escuro dos meus sonhos você segurava minha mão e me chamava pra brincar. Seu sorriso eu já conhecia e ele sempre me dera um conforto apaziguador, uma calma budista. Tu sempre andaste comigo, eu sei.  Já jogamos pedrinhas na lagoa e pulamos corda. Chutamos latas e brincamos na enxurrada. Lembro-me bem de nossas gargalhadas e gritarias pela casa, nossas correrias desenfreadas quando nos chamavam pra tomar sorvete. Sempre fora tudo tão doce, tudo tão azul. Mas agora, de fato, quero repetir todas essas nossas aventuras. Todas as nossas estripulias. Mas como já faz tempo, e papai anda um pouco velho, preciso ir com calma pra não me machucar. Papai, há tempos, tem tido uma só brincadeira. Que é a de se sentar numa cadeira e escrever. Parece chato, né? Mas é a brincadeira mais divertida que descobri nos últimos tempos. Nela podemos ser outros, podemos ser homem ou mulher, bandido ou mocinho, piratas, índios e xerifes. Podemos ser nós mesmos, mais do que nunca. Podemos chorar e gritar, rasgar o peito, podemos, até, engolir o mundo inteiro, ir à Lua, visitar outros planetas num foguete só nosso.  Quando estiver maiorzinho irei te ensinar, prometo! Criaremos nossos barcos, nossas naves. Criaremos nossos cavalos alados, nossos gigantes pra nos protegermos dos perigos. Seremos, tu e eu, fortes guerreiros de batalhas. Confesso que estou ansioso pra chegada desse dia, porque essa minha brincadeira dá uma vontade danada de viver mais, de querer experimentar mais, e quanto mais nos entregamos, mais podemos brincar. Essa brincadeira, meu filhote, não acaba quando crescemos e ficamos tímidos e chatos. Nela podemos nos lançar até o infinito, sem medo de parecer feio ou idiota. Por que essa brincadeira vem de dentro, de nosso silêncio, do que somos.
 
(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013



Tem alguém aí? Responda! Eu preciso tanto falar. Preciso contar tudo o que acontece comigo. Vamos, dê algum sinal! Juro que serei breve. Falarei tudo que me é urgente, tudo que está contido e empoeirado. Por favor, responda!  Não tomarei muito seu tempo. É que essa vida anda bruta demais, chula demais. Precisamos de desabafos e aditivos. Precisamos ganhar dinheiro, sair pra passear. Andamos tão apressados, esse gosto de gasolina. Ei? Você ainda esta aí? Diga alguma coisa! São tantas noites mal dormidas, esses cigarros entupindo os cinzeiros. Nossas velhas vidas, nossas casas vazias, a mesma mesa posta. Vamos! Não é possível que fique calado tanto tempo! Nossas vidinhas medíocres, essas camas cheirando a mofo, louças sujas na cozinha, esse amor dando bolor. Esse existir sem sentido. Não vai falar nada? Essa sua estúpida vontade de ter, sempre ter, alguma coisa nova, algum objeto novo. Estar na moda, trepar, gozar, mastigar e cuspir fora. Vai ficar fazendo charme, né? Esse excesso de querer, de preencher o inevitável vazio, de precisar todo dia ir ao açougue, ao supermercado, à padaria. Essa vontade de almoçar em lugares bonitos, de comidas bem fartas. De se achar importante. Vai, fique calado mesmo! Engula toda essa fumaça dos carros, se empanturre ao máximo de toda essa porcaria. Afinal, a vida é essa pirraça, não é mesmo? Pra você não há nada demais. Meus créditos estão no fim. Já que vai bancar o calado, preciso desligar. Mas não diga que não avisei. Você não quis se manifestar. Nos vemos por aí. Até logo!


(Leonardo Schneider)


Toda vez que saio pra rua, tenho a nítida impressão, vendo os olhos e bocas dos transeuntes que me cruzam o caminho, de sentir toda a existência do que nunca fui, ou uma pequena impressão do que eu poderia ter sido. Sinto, talvez, uma minúscula parcela do que eu realmente sou. Acabo por entrar, goela abaixo, em todas essas bocas que vejo, vasculhando as entranhas com bastante cuidado e perspicácia. Vou abrindo caminho nesse interior, indo cada vez mais fundo, tateando pulmão, coração, esôfago e estômago. Apalpo tudo que posso. Quero sentir as diversas texturas tão particulares de cada um. Saio na mesma velocidade com que entro, e nesse lampejo de observação, sinto o outro em mim mesmo com intensidade absurdamente avassaladora. Por certo, estou notoriamente errado das impressões que acabo por roubar, pois verdadeiramente crio tais sentimentos a partir de meu próprio ponto de vista, na experiência de vivenciar o outrem. Puro deleite. Tudo bem. Pele por pele, reconheço, a minha já basta. Mas todo esse enredo preenche meu vazio existencial.  Há tantos outros em mim mesmo. Só que esses tais se escondem com maestria no escuro, no oco, no buraco do meu peito. É difícil agarrá-los por serem escorregadios e voláteis. Talvez, por isso, por ser aparentemente mais fácil, busco nessa experiência exteriorizada, os meus tantos “eus” perdidos pela cidade.
 
(Leonardo Schneider)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


Dentro do olho muitos arcos.
Íris, retina, córnea, pupila.
O seu e o meu mundo,
Nossa rua.
Dentro do olho muitos ciscos.
Poeiras, pedregulhos, ventos de areia.
Os seus e os meus colírios,
Nossa fuga.
Dentro do seu olho, o meu olho.
E o que você vê é seu, o que eu vejo é meu.
Não há nada mais sincero que o conteúdo do fundo das vistas.
 
(Leonardo Schneider)

terça-feira, 1 de outubro de 2013


-Seu café esta esfriando!
 Alerta a moça de minissaia sentada do outro lado do balcão. Batom roxo, maquilagem borrada. Parecia ser uma dessas mulheres que virara a noite em papos rasos, das falidas mesas de botequim no centro da cidade. Tomava seu café matinal com a cara amassada. Um maço de cigarros baratos posto de lado, cinzeiro entupido de bitucas amareladas. Os fundos olhos denunciavam. Por certo, exagerara na noite anterior. Queria companhia. Dava pra ver pela maneira como  inclinava o corpo pra frente em sinal de “sim”. Falava rápido, talvez por medo de que entre uma pausa e outra, o ouvinte catatônico se retirasse. Reclamava do alto preço pago de aluguel num muquifo do centro, de que tinha preguiça de política, de que pintava o cabelo uma vez por semana para manter uma aparência mais jovial. Falava sem pausas, misturando os mais corriqueiros e fúteis assuntos. Do lado de cá do balcão, um rapaz fixava os olhos  num quadro com a fotografia de Chaplin e um cachorro. Não prestava a mínima atenção na conversa da moça, de vez em quando,  com o canto de olho, via o abrir e fechar da boca falante. Calça jeans desbotada e sapatos sujos. Devia trabalhar no campo ou em alguma obra ali perto, pois eram perceptíveis as marcas e os torrões de lama que saíra de seus sapatos na reta do banheiro.  Não havia mais ninguém naquela ratoeira. Um café e mais nada. Era o que pedia de 10 em 10 minutos. Estava tomado em total silêncio, completamente taciturno. O atendente passava aquele pano imundo, na surrada madeira que compunha o tampo daquele velho balcão. Palito na boca, barba mal feita. Tinha a aparência de um estivador de porto. Camiseta branca, corpo peludo, sujo. O fiel retrato do descaso de si mesmo. Atento à situação, logo percebera uma certa mudança na expressão do rosto daquele garoto. Parecia estar, aos poucos, perdendo a paciência com aquele falatório incessante da moça histérica. Um clima de tensão instaurava-se na bodega. A mulher falando e falando, o rapaz com o olhar no retrato,  o atendente, à espreita, passava o fétido pano no balcão e rolava o palito na boca. De repente, um berro:
-Malditos palhaços! Nunca arrancaram-me uma risada!
O silêncio foi fúnebre. A mulher histérica e o atendente se entreolhavam sem nada entender. O garoto dava socos no balcão e gritava:
-Filhos da puta, desgraçados! O cinema é uma piada de mau gosto! Vão pro inferno com seus enlatados!!!!!
Atirou a xícara contra a parede, que deixou  um rastro de café até o rodapé.  Abriu a porta com um chute e sumiu na calçada. O dia estava cinzento. A mulher se calara. O atendente retirou-se pra enxaguar o maldito pano fedido na pia.
(Leonardo Schneider)